A casa está quieta e sozinha no começo dessa noite, o computador trava e eu espero paciente até a ponteira do teclado voltar, escuto o silencio da rua e a liturgia da estação que mudou nessa semana e prepara o coração numa solenidade sublime e simples, a morte a vida no próximo fim de semana.
Aguardo a ressureição com uma esperança jamais sentida, acredito cegamente que na vigília pascal a depressão vai me dar um tempo e tudo vai ser passado. Mas eu sei que sumi, vou te contar um pouco das coisas por aqui. Vou escrevendo e nem vou me dar o trabalho de corrigir… sei que posso tentar deixar legal para te entreter as custas da minha história…
Alexia, O Anjo mais velho, Teatro Mágico.
Me lembro de uma oração no inicio dessa quaresma, ficava latente que eu trilharia uma quaresma atípica, com uma sensação esquisita, seria amiga da cruz.
Me perguntei nas primeiras semanas o que seria ser amiga da Cruz. Ir até a recepção de um hospital ver um muito amado amigo testar positivo para dengue? Ser madrinha de um casal amigo? Ser gentil com a nada adorável mulher que trabalha comigo? Fazer silencio perante as chacotas sobre minha aparência e meu estado de vida? Acredito que isso fez e faz parte, mas tinha algo mais por vim.
Foi quando aquilo que estava escondido desde as últimas semanas de janeiro começou se apoderar de mim. Só um pensamento, soffia. Tudo certo. Tudo começou a ficar cinza muito rápido. Tive uma consulta numa manhã de sábado, falei o que estava aparentemente tudo certo, ri na conversa, relatei minha vida e alguns eventos traumáticos tratados em terapia, tudo caminhando bem, religião, vida, família, ferramentas aparentemente harmonizadas, comecei a chorar, foi estranho e fui tocada com uma verdade:
“Você não está em condições de decidir nada. Precisamos te estabilizar. Se tomar alguma decisão e der certo, será sorte, mas a chance de dar errado é muito maior. Soffia, você deposita sua felicidade nas coisas externas, em x,y e z situações. Enquanto você não achar sentido em si, tudo vai mal. Você tem depressão e qualquer médico meia-bomba diagnosticaria isso em você. Vamos tratar isso agora...”
A cena repete, a cena se inverte
Enchendo a minh'alma
Daquilo que outrora eu deixei de acreditar
Sai atordoada por uma das avenidas principais da cidade, a verdade desnuda a gente, não guardei a receita nem o documento, no caminho, raízes de arvores me fizeram torcer o pé algumas vezes, fui andando sem rumo até a igreja azul da praça, corri para os primeiros bancos, larguei a bolsa com a alça suada devido ao calor e desabei. Chorei até a cara ficar vermelha, mas tinha mais coisas para fazer, levantei e segui para casa sem contar o que aconteceu. Sabia que precisaria comprar o remédio, mas não tinha nada no cartão, foi no crédito mesmo. Cheguei em casa, esperei anoitecer e contei para meu pai.
Nesse tempo até aqui, a única coisa que tive empenho mesmo foi tentar rezar. Sentava na mesa muitas vezes sem um pingo de vontade, lia qualquer coisa, mas eu queria ouvir Deus.
Tua palavra, tua história
Tua verdade fazendo escola
E a tua ausência fazendo silêncio em todo lugar
Me vi longe de quem sou e de quem amo mesmo perto. Como eu queria a presença voluntária, o colo, o carinho no cabelo, a risada alta, conversa sobre teoria da conspiração, palpitar sobre assuntos que temos zero propriedades para falar, queria estar e também sumir. Não queria ver ninguém nesse estado.
Quando escutei essa música, esse trecho ai fez tanto sentido, que comecei a chorar, a ausência fazia silêncio em todo lugar, ausência de mim e do outro.
Me vi com crises indo para a célula, cabeça longe nas formações, uma dúvida sobre meu lugar surgiu no horizonte, não tinha seguranças em nada mais. Nas crises humanas, o apostolado me dava sustento, mas como se tudo estava incerto agora? Não cedi, se não me senti bem, me debrucei no coração da capelinha do bairro, fiquei naquele último banco nos sábados seguintes.
Existe essa condição minha, existe a cruz e existe o negócio de ser amiga.
Metade de mim agora é assim
De um lado a poesia, o verbo, a saudade
Do outro, a luta
Força e coragem pra chegar no fim
Até uma quinta recente.
Acordei naquela manhã na que seria a pior semana da minha vida, já tinha se passado dias de angustia e dor, criei o habito de deitar no chão gelado debaixo da janela, quem entrava no quarto não me veria de cara. Calor, caos externo e interno, eu olhei para o abismo da morte e ele olhou para mim, um convite que pararia com aquela dor no peito. Naquela quinta, eu falhei. Falhei em tentar tirar da vida algo que é tão intrínseco a ela, falhei em achar que não tinha mais sabor as coisas tão bonitas que vivi apesar dos últimos tempos. Falhei em dar ouvido a uma voz dentro da minha cabeça que acha que estaríamos bem se não acordássemos mais. Falhei. E depois de falhar naquela madrugada, acordei as 6h15 e fui trabalhar com a morte e falha no rosto.
“Soffia, seu olhar brilhante sumiu. Você está bem?”
Na sexta, fui para a vigília, obrigações do ofício. Como eu queria ficar com o Senhor e fiquei. O Senhor me falou de vida. E insiste. Liguei para minha psicóloga, para o psiquiatra, fui falar com um padre, me confessei, consagrei a São José, retomei as práticas, fui para a natação e não consegui respirar direito.
E o fim é belo, incerto
Depende de como você vê
O novo, o credo
A fé que você deposita em você e só
Aqui na lousa do quarto tem uma imagem de um sapo, o Príncipe Naveen, de A Princesa e o Sapo, numa festa a fantasia da Obra, me fantasiei de Tiana. Colei ele aqui porque a impressão ficou linda e olhando aqui agora, é providencial para terminar esse texto.
O Leandro, meu professor de natação me passou um exercício que imita o nado de um sapo. Pernas meio abertas, pés de palhaço, quase um plié de bailarina, braços estilo nado peito, é meio engraçado e humilhante a posição, mas divertida. Coordenar esses movimentos é um desafio, tudo precisa fazer você “cortar a água” em seguida da perna de sapinho. O nado peito me faz sentir todos os músculos das costas e eu vou fundo na piscina, como me sinto bem mergulhando, mas naquela aula, eu não conseguia respirar. Mini afogamentos, bebi água até as tampas, minha cabeça estava perturbada com todos os relatos acima e mais aqueles que prefiro não comentar.
Parei na borda e falei “você precisa relaxar, mana. Que isso!” Minha irmã não estava na aula, estava sem muitas seguranças ali, queria ir embora logo. Foi quando deixei o corpo flutuar. Fui fazendo e mesmo coma água agitada dos caras da raia do lado fazendo altos movimentos, fui pensando nas coisas mais bonitas e findas que vivi...
Quando dei por mim, o nado estava harmonioso e só escutei de fora da piscina “certinho soffia”.
O ar entrando pela boca e saindo pelo meu nariz sem impedimentos, percebi que se não existisse mais, não deixasse o curso natural da vida se cumprir, não poderia me lembrar.
E hoje, na missa de Ramos aquele doce e fofo padre disse “a memória faz parte de ser cristão”
Só enquanto eu respirar
Vou me lembrar de você
Só enquanto eu respirar
Confesso que contar para os meus amigos o que tem acontecido não foi fácil. Chorei diversas vezes no telefone com tanto amor que uma isolada não se permite viver. Ninguém, nem mesmo você lendo esse texto sabe da gravidade dos acontecimentos das últimas semanas e nunca vai sentir, cada um é um.
Continuo não bem.
Continuo com a saga de adaptação dos remédios, de me conformar com tudo isso, nenhuma das crises passou, umas até ganharam mais corpo nessa sexta que se foi. Estou exatamente igual, mais firme talvez pensando bem...fiz um bolo e macarrão ontem para aliviar. Tenho que me preparar para ser madrinha de uma linda mulher que vai crismar, que me escolheu mesmo sabendo de tudo isso e mais do que ando passando. É uma amável louca também.
Estou escrevendo e acredito que isso é um grande avanço. Comecei no mínimo cinco textos em todo esse período e só fui acumulando os rascunhos no computador, queria te trazer alegria leitor, mas é só mais uma tour minha.
Eu vou continuar por aqui um pouquinho mais, sei que faz parte.
O constante sono, o olhar parado, não conseguir concluir um raciocínio falado em voz alta.
Menos resistente a ajuda e a receber amor, eu estou cansada.
Hoje escutei baixinho: amiga da cruz, não é sofrer com seu Amigo?
Só posso unir-me e me cuidar.
Me dê mais uns dias ou meses, logo eu volto… nadando melhor o tal do sapinho, com o beijo da vida, virando uma outra gente soffia de novo.
Só enquanto eu respirar
Vou me lembrar de você
Só enquanto eu respirar
E é isso.